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Jul 1, 2012

Quando o jornalismo merece aplauso

 

 

Minha história – Therezinha Zerbini: A ‘burguesona’ que foi à luta

ELEONORA DE LUCENA

DE SÃO PAULO

 

Criadora do Movimento Feminino pela Anistia, Therezinha de Godoy Zerbini diz ter “coragem de mamãe onça”. Era chamada de “burguesona” no presídio onde conviveu com Dilma Rousseff. Mulher de general cassado pelo golpe de 64 e cunhada do pioneiro em cirurgia cardíaca Euryclides Zerbini, ela, aos 84, elogia a Comissão da Verdade.

  Alessandro Shinoda/Folhapress  
A aposentada Therezinha Zerbini, 84, em sua casa em São Paulo
A aposentada Therezinha Zerbini, 84, em sua casa em São Paulo

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Era Quarta-Feira de Cinzas de 1970. Estávamos jantando. Tocaram a campainha. A empregada disse que era o capitão Guimarães. Não sabia quem era, mas mandei entrar. Chegaram como uns aloprados, de metralhadora na mão. Mandei servir café.

Meu marido, o general Euryale de Jesus Zerbini, que tinha sido cassado e reformado na quartelada de 1964, se levantou e falou: “A quem vocês se reportam?” O homem respondeu: “O seu Exército não é mais o nosso”. Euryale disse que ia ligar para o chefe do 2º Exército. Eu disse para ele não pedir nada a ninguém; que eu entrava e saía disso sozinha.

Assim fui para a Oban. Fiquei lá cinco dias. Tinha uma parede com um vitrô na parte de cima. Por ele, eu vi Frei Tito todo ensanguentado. Escutava os gritos. Ele apareceu todo machucado.

Eu não fui torturada porque desafiei, enfrentei. Veio um gritando na minha cara. Eu disse: “Capitão, tenha compostura, eu não estou aqui para ouvir grito”. Ele disse: “Nós temos métodos científicos para tirar a verdade”. Eu disse: “Sei quais são os métodos científicos. Os senhores são torturadores. E querem começar é já!”

Nessa hora ele tremeu, parou e começou a gritar: “Já para a sua cela!” Vi que eles não tinham ordem para me bater. Voltei para a cela me urinando de medo.

Fui para o Dops, onde fiquei mais uma semana e depois para o Presídio Tiradentes. Vi gente chegar estropiada. Foi quando conheci a Dilma. Ela era moça, liderava. Ficava discutindo e estudando até de madrugada sobre a história do país. Era intelectual, muito direita, honesta.

Não fui sua colega de cela, mas convivíamos. Dilma sabia que eu não era comunista, mas que era uma mulher aberta. Ela reconheceu quando eu pedi melhorias para o diretor do presídio e conseguimos fazer uma cozinha. Éramos umas 40 mulheres.

Fazíamos almoço divididas em turnos. Ela baixou ordem: uma fazia o feijão, outra o arroz. Eu era a “burguesona”. Minha família mandava coisas gostosas para todo mundo: oito frangos, uma caixa de laranjas, uma assadeira de pastéis, um pernil inteiro.

Com o meu rádio, escutávamos a programação de Cuba. Colocávamos o som bem alto para irritar a carceragem. Pela televisão, assistíamos [à novela] “Irmãos Coragem”. Naquela época, minha filha era modelo e fazia um anúncio de desodorante que passava no intervalo da novela.

Ao todo, fiquei seis meses presa e fui enquadrada na Lei de Segurança Nacional por causa do envolvimento com os dominicanos. Frei Tito fazia filosofia com o general [meu marido]. Estudavam Merleau-Ponty. A professora era a Marilena Chauí, que o general achava que era a mulher mais inteligente que conhecera.

Conheci o general quando eu trabalhava no Hospital do Mandaqui, e um muro caiu. Ele comandava a Força Pública do Estado, e fui pedir ajuda para o conserto. Eu o cativei. Nossa diferença era de 20 anos.

Nasci em 1928 e, em 1932, fiz parte do esforço de guerra. No Clube Piratininga, eu recitava o Saci. Olha que metida! Aos 16 anos, fiquei tuberculosa dos dois pulmões. Fui para um sanatório e vi a diferença entre ricos e pobres. Isso despertou o meu anseio de mudança.

Depois fiz direito no Vale do Paraíba [SP]. Tive como colega o Sérgio Paranhos Fleury! Na faculdade, quando ele não estava drogado, era um homem aceitável. Quando estava drogado, virava o cão.

Meu marido me dizia que eu andava pelo mundo pelo cheiro e pela cor. Sou assim. Não sou um ser que se jacta de ter cultura. Tenho é intuição. Queria fazer coisas de ordem prática, acabar com aquilo que estava ali.

Em 1975, organizei o Movimento Feminino pela Anistia. Fiz um manifesto e passei a formar núcleos pelo Brasil inteiro para colher assinaturas. Comecei pelo Rio Grande do Sul. Coloquei os manifestos numa caixa e mandei pelo correio para a Dilma, que foi muito habilidosa.

Tenho uma coragem de mamãe onça. Em 1978, quando [o então presidente dos EUA] Jimmy Carter veio ao Brasil, resolvi fazer uma carta de saudação para a Rosalyn [mulher dele] dizendo: “Nós que lutamos por justiça e paz…”

Fui para Brasília bem bonita, com um vestido de flores. Com a minha cara clara, parecia uma gringa.

Quando a Rosalyn chegou, com a carta na mão, disse para ela: “Madam, it’s for you”. Senti a mão dela gelada, parecia uma lagartixa. Ela estava lívida. Foi um fuzuê. Os repórteres franceses me perguntaram: “Madame, vous êtes maquis [militantes da resistência francesa]?” Eu disse: “Oui, oui, maquis”.

A anistia foi uma conquista. Não foi dádiva, foi luta. Não tem que rever.

Eu costumava dar o exemplo da mulher do Lot, que olhou para trás e virou estátua de sal. A anistia é conciliação, paz, de lado a lado. Tem que esquecer. Tinha bandido dos dois lados.

Criar a Comissão da Verdade é bom. Não espero coisas novas, porque já vi tudo por dentro. Mas é preciso dar a oportunidade para os outros sentirem e verem. Como diz Santo Agostinho, o coração é a sede da memória.

 (Folha de S.Paulo, 1/7/2012)

Comentário do Blog do Citadini:  Esta matéria da Folha, deste domingo, da jornalista  Eleonora de Lucena, merece aplausos acalorados. E, em pé! Um retrato elegante, correto e inteligente da lutadora Therezinha Zerbini, fundadora do Movimento Feminino pela Anistia. A matéria, que está na coluna “Minha História”, traz um retrato perfeito de Therezinha, do Brasil  e dos anos de chumbo.

Conheci Terezinha, quando ela iniciava  a luta pela anistia, no princípio dos anos 70. Creio que, em 1974 (ou 75), ela organizou uma missa para marcar o lançamento do Movimento. Foi na Igreja do Largo de São Francisco, vizinha à faculdade de Direito, onde cursava o segundo ano. A missa foi uma peça inesquecível: alguns poucos alunos da Faculdade (eu estava com Eliane, minha recém namorada, e que seria minha companheira por toda a vida)  e alguns fieis que habitualmente rezavam naquela Igreja. Umas senhoras idosas, alguns senhores que moravam em cortiços próximos e um monte de “tiras”. Estes últimos, todos vestidos de forma estranha (roupa muito arrumada) para uma missa de estudantes e pobres da região. A Igreja,  por razões óbvias, não quis rezar a missa pontuando que era contratada pelo Movimento Feminino de Anistia,  e o padre avisou que a missa era pelo “Dia dos Pais”. O sermão do padre foi uma “piração total”. Sem poder, ou com medo, de dizer o real motivo da celebração, começou a homilia – de uma forma desconexa – falando de uma tempestade,  onde a figura do pai era a única salvação. Algumas mulheres do Movimento – inclusive Eliane – não gostaram e, após a missa, foram falar com o padre que, assustado, só dizia “a missa acabou!”.

Therezinha foi uma lutadora exemplar.
Seu esposo era o general Zerbini, de quem me tornei grande amigo; ele havia sido cassado em 1964,  pois fora contra o Golpe Militar. Era um general culto, com quem aprendi muito das guerras que o mundo teve nos últimos séculos. Therezinha sempre foi irreverente, destemida e pronta para qualquer enfrentamento. Prestou um grande serviço ao País com sua luta pela Anistia, em tempos em que muitos temiam falar até a própria palavra “anistia”. Ela e o general nunca foram “comunistas” ou “terroristas” como diziam à época. Eram dois defensores do regime democrático. Amavam o Brasil e a Democracia. Merecem todo aplauso pelo que fizeram naqueles anos de grandes dificuldades.

A Folha marcou um golaço com esta matéria. Viva!  

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