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Nov 26, 2019
admin

Chile: mudar ou manter

O colapso chileno chegou como uma turbulência no céu claro. Ninguém via nada de estranho no horizonte e a rota era de completa tranquilidade. Subitamente, porém, apareceu uma tempestade como nunca vista. O país que vivia décadas de progresso e estabilidade agora está no meio de uma onda de contestação que vem demolindo tudo pela frente. Bastou um mês de manifestações para o governo capitular. Primeiro, uma guerra às ruas foi declarada. Logo depois, veio uma onda de concessões que ainda não parecem ter arrefecido a situação. Com as ruas cheias e cada vez mais inquietas, a saída encontrada foi convocar o povo para votar uma nova constituinte que reforme tudo. É aqui onde aparecem as divergências entre os chilenos: alguns querem uma reforma que consiga preservar o modelo de liberalismo econômico. Estes precisam fazer a população acreditar que o colapso atual é passageiro e que pouco precisa ser mudado. O ministro Paulo Guedes, entusiasta da revolução liberal chilena se encontra neste grupo; dos que pensam que os problemas são pontuais e passageiros. Sua fé é de que o modelo, por si, consertará as falhas e que o caminho da estabilidade e progresso seguirá.

A confiança do ministro brasileiro no sistema chileno é total. Tanto que, junto com a primeira reforma para implantar o modelo liberal no Brasil, foi proposto o projeto que implantava a capitalização previdência. A proposta foi derrotada friamente. Os parlamentares brasileiros, mesmo antes da convulsão chilena, mandaram a tal capitalização para o arquivo quase sem discussão. Mesmo dentro do conturbado Chile os defensores deste modelo continuam muito ativos. A economista Bettina Horts, que dirige o Instituto Liberdade e Desevolvimento, proclama que não se deve retroceder no modelo liberal. Ela reconhece que o sistema de capitalização fracassou, mas que a solução possível envolve outras reformas liberais. Novas leis trabalhistas ainda mais flexíveis poderiam corrigir os erros. Diz que uma das razões da crise pode ser encontrada nos muitos direitos dos contratados. Assim repetia, também, o oficial naval japonês Minoru Genda, que planejou os ataques a Pearl Harbour. Ele passou a vida inteira dizendo que o ataque não foi um sucesso absoluto (para os japoneses) devido ao cancelamento de uma segunda onda de ataques aéreos contra as forças americanas. Se ao menos esses ataques adicionais fossem realizados, tudo teria sido resolvido, ali mesmo.

Deixando as opiniões dos economistas de lado, é necessário dizer que quem definirá o futuro chileno serão os eleitores do pleito para a nova constituinte. E é difícil conceber que os mesmo que desejam a queda do modelo atual serão aqueles que o sustentarão.

O colapso súbito do modelo chileno surpreendeu a todos. Direita e esquerda foram pegas no contrapé e passaram a usar argumentos pouco lógicos. A surpresa não pegou só o Chile, ela chegou também por aqui. Muita gente antecipou que o mesmo aconteceria em terras brasileiras e já conclamaram para que o exército se preparasse para uma luta nas ruas, afim de garantir a ordem. Foi apenas barulho de internet. Também o ex-presidente Lula, falando aos seus, disse que “devemos fazer igual ao povo chileno” e promover manifestações. É claro que o que ocorre no Chile não é contra a gestão atual, do presidente Piñera. É um levante que questiona quatro décadas de um modelo de economia liberal. Isso não ocorreu no Brasil, por maiores problemas que tenhamos.

Enquanto o Chile construía o modelo dos Chicago Boys, diferentes governos brasileiros (de direita, centro e esquerda) faziam caminho oposto. Várias foram as medidas de “amortizadores sociais” instituídas ao longo dos últimos trinta anos. São soluções que atenuam a péssima distribuição de renda e socorrem os mais pobres, permitindo maior compactação social. O governo Médici (no decorrer de sua ditadura) criou o Funrural, que hoje atende milhões de pessoas em situação muito vulnerável, em todo país. Já o BPC (Benefício de Prestação Continuada) foi implantado no governo FHC, apoiando atualmente quase cinco milhões de brasileiros, com uma assistência que chega muito perto de um salário mínimo. O Bolsa Família, incorporado no governo Lula, atende perto de quatorze milhões de brasileiros. Há também o auxílio-doença, auxílio-acidente, auxílio-invalidez etc. Programas como o Bom Prato, do estado de São Paulo, e outros de natureza alimentícia também impactam bastante a população mais pobre.

Todas essas políticas atenuam muito a injusta situação social brasileira. É preciso destacar também o SUS, que é um importante mecanismo de saúde pública e que, com seu carater gratuito e universal, socorre as camadas sociais de menor renda e dá a certeza de que serão atendidas, ainda que com algumas falhas, quando estiverem doentes. Muitas são as iniciativas louváveis e incontestáveis do SUS.

Um país que possui um modelo assim é claramente muito diferente do Chile. Mesmo com suas imperfeições, nosso mecanismo socorre os pobres e acaba por inibir revoltas como a que se passou no nosso vizinho.

Apesar de ainda não ser certo o que ocorrerá no Chile depois deste quente processo social, certamente podemos concluir que o que acontecer por lá muito repercutirá no Brasil e em toda a América Latina.

Nov 22, 2019
admin

Entrevista ao Estadão

 

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Estadão – Fausto Macedo e Pepita Ortega

Em entrevista ao Estadão, presidente e decano do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo afirma que a proposta ‘é um duro golpe na própria de ideia de federação, pois subordina a gestão fiscal de todos os entes aos interesses, metas e programações da Secretaria do Tesouro Nacional’

A PEC do Pacto Federativo é um pacto antifederativo, na avaliação do presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, conselheiro Antônio Roque Citadini.

Decano da Corte, um dos mais experientes conselheiros de Contas em todo o País, Citadini faz um alerta, em entrevista ao Estadão.

“Esta PEC é um duro golpe na própria de ideia de federação, pois subordina a gestão fiscal de todos os entes aos interesses, metas e programações da Secretaria do Tesouro Nacional, que torna-se, assim, um superpoder acima da União, estados e municípios.”

Na avaliação de Citadini, ‘estas ideias nascem da tendência da STN de tratar o país como um grande ente e não um Estado Federal’.

O conselheiro do TCE paulista – Corte que analisa as contas de 644 municípios em todo o estado – diz enfaticamente que ‘é muito claro que a União é um péssimo exemplo de gestão fiscal’.

“Ela produz continuadamente grandes déficits e para cobri-los sempre lança títulos no mercado”, ele sustenta.

Para Citadini, ‘a União faz o papel de fábrica de buracos orçamentários’.

O presidente do tribunal de São Paulo é desafiador e não dá trégua. “Ficamos numa situação grotesca: quem é indisciplinado quer disciplina; quem é perdulário quer economia; quem é pela gastança fala em gastos controlados.”

LEIA A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA COM O PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO, ANTÔNIO ROQUE CITADINI

ESTADÃO: Como a PEC do Pacto Federativo pode afetar os Tribunais de Contas?

ANTÔNIO ROQUE CITADINI: A proposta é, na verdade, um pacto antifederativo. Esta PEC é um duro golpe na própria de ideia de federação, pois subordina a gestão fiscal de todos os entes aos interesses, metas e programações da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que torna-se, assim, um superpoder acima da União, estados e municípios. Os tribunais de contas são afetados porque esta sanha centralizadora objetiva gerir de forma unitária o que a Constituição declarou como sendo uma federação.

ESTADÃO: Qual o maior receio dos conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados?

CITADINI: Os estados têm gestões e, muitas vezes, organizações administrativas bem diferentes de seus pares e da União. A intenção do Ministério da Economia é ser a única voz num país onde ainda existem (mesmo que poucas) diferenças administrativas entre seus entes. Cito exemplos do Estado de São Paulo. Faz décadas que a Administração Paulista estabeleceu uma forma de financiamento própria para suas três instituições de ensino superior, vinculando as receitas das universidades a um percentual do ICMS (aproximadamente 10%). A União não adotou o mesmo caminho e nunca gostou deste modelo. São Paulo mantém, assim, três das melhores universidades do país, mas nada garante que, numa interpretação diferente da adotada em São Paulo, a União altere o entendimento sobre esta forma de vinculação e comprometa o sucesso deste modelo. O mesmo corre na área da habitação popular. São Paulo destina, ainda, 1% do ICMS para a construção de moradias. Este programa é claramente o mais exitoso no campo de habitação em todo país.

O governo federal, nos seus programas, nunca procurou criar uma base sólida de receitas para construção de moradias populares ou para o financiamento do ensino superior. Um terceiro campo mostra, ainda, as peculiaridades existentes em São Paulo, em relação a outros estados e à União: na área da saúde, o estado (e um grande números de municípios paulistas) adotou um sistema para gerir a saúde por meio de organizações sociais, com contratos de gestão. Só no estado metade dos serviços de saúde são administrados desta maneira. Reconhecidamente, a Secretaria do Tesouro Nacional adota as medidas contra este modelo, que o torna inviável, obrigando que os funcionários das organizações sociais privadas sejam computados como gastos do orçamento geral de pessoal. Adotado o roteiro da União, o caminho será reestatizar a gestão de hospitais e postos de saúde ou simplesmente fechá-los.

Estes exemplos mostram o perigo de querer comandar o país a partir da visão da Secretaria do Tesouro Nacional.

ESTADÃO: O sr. concorda com a submissão das decisões dos Tribunais estaduais ao TCU?

CITADINI: A competência originária do controle externo da administração é do Congresso Nacional, das Assembleias Estaduais e das Câmaras municipais. Este controle é exercido pelos Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos Municípios, naqueles lugares onde estes últimos existem. Subordinar a competência de um tribunal a outro é agredir a atuação legítima das Assembleias e Câmaras, que a Constituição define e garante. Esta situação, de incumbir ao TCU a revisão das decisões proferidas pelos TCEs, subtrai as competências dos estados e municípios.

ESTADÃO: Por que tanto incomoda a ideia de o TCU rever decisões já proferidas pelos Tribunais de Contas dos Estados?

CITADINI: O próprio TCU já disse que não está envolvido na elaboração desta PEC. Estas ideias nascem da tendência da STN de tratar o país como um grande ente e não um Estado Federal.

ESTADÃO: Como decano dos Tribunais de Contas dos Estados, o sr considera a União um exemplo de disciplina fiscal a ser seguido?

CITADINI: É muito claro que a União é um péssimo exemplo de gestão fiscal. Ela produz continuadamente grandes déficits e para cobri-los sempre lança títulos no mercado. O estado de São Paulo, nos últimos trinta anos, vem apresentando equilíbrio em suas contas, com pequenos superávits e pequenos déficits, enquanto a União faz o papel de fábrica de buracos orçamentários. Desde o governo Castelo Branco, quando foi criado o ICMS e feita a reforma tributária, e mesmo em períodos de hiperinflação, o estado de São Paulo sempre apresentou grande disciplina fiscal. No mesmo período, a União navegou soberana no mar de produzir dívida, imprimir dinheiro e lançar títulos no mercado. Ficamos numa situação grotesca: quem é indisciplinado quer disciplina; quem é perdulário quer economia; quem é pela gastança fala em gastos controlados.

ESTADÃO: O TCU é uma referência?

CITADINI: Como dito, o TCU já declarou não estar participando do processo de elaboração desta proposta. Mesmo que estes órgãos sejam todos definidos como tribunais de contas, TCU, TCE e TCM trabalham com modelos de fiscalização diferentes. O TCU, por exemplo, só audita se for provocado, enquanto o TCE-SP e a maior parte dos tribunais definem seu roteiro de fiscalização mesmo quando não provocados. Estes órgão de controle estão organizados de maneira muito diferente e a comparação não é cabida.

ESTADÃO: A proposta tira poder das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais? Por quê?

CITADINI: Prevalecendo esta PEC, muitas decisões fiscais serão definidas pela Secretaria do Tesouro Nacional e implementadas por um conselho, junto com o TCU. Não há barreiras para as interpretações federais, e estados que atuarem de forma diferente terão problemas. Considera-se, também, que muitos estados têm situação financeira debilitada e dependem de transferência de recursos da União. A submissão será, nesses casos, quase que total e comprometerá diretamente a autonomia dos estados. Também o poder legislativo local ficará limitado.

ESTADÃO: Qual a parcela de responsabilidade da União no colapso econômico nos Estados a partir de diversas ações de isenção de impostos fiscais federais?

CITADINI: Não há dúvidas que muitas das razões do colapso fiscal da União e dos estados tiveram início nas isenções e desonerações federais. Com tais medidas foram comprometidas as receitas e diminuídas as transferências para os estados. É claro que muitos estados tiveram responsabilidades, pois também adotaram um sistema de isenção parecido e, por outro lado, não contiveram os gastos. Especialmente aqueles de pessoal. Muitos estados estão pagando pesado preço por esta política. Eles, hoje, atrasam pagamentos de salário, deixam de cumprir contratos de serviços e obras e vivem uma situação fiscal caótica. A União, que também cometeu pesados pecados que resultaram enormes déficits, não teve o mesmo destino dos estados inadimplentes pelo simples fato de poder emitir títulos públicos e assim continuar cumprindo suas obrigações. A herança é uma dívida pública cada vez maior, que também cobrará seu preço. Destaco que o estado de São Paulo, mesmo com a brutal crise no campo econômico, conseguiu manter em dia suas obrigações, enquanto a União apenas gera novas dívidas.

ESTADÃO: Onde está a origem dessa investida contra os Tribunais de Contas dos Estados?

CITADINI: O ministro Paulo Guedes acredita que vários estados entraram em colapso fiscal, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul, etc, porque os tribunais de contas assim permitiram. É claro que esta é uma explicação simplista. Muitos são os motivos para esta derrocada fiscal. Certamente alguns erros de tribunais foram cometidos, mas nem de longe podemos imputar a eles a responsabilidade total pela crise fiscal. O ministro Guedes tende a culpar os tribunais pelas dificuldades dos estados, mas não se lembra deles nos casos dos estados que não colapsaram.

ESTADÃO: Onde erram os Tribunais de Contas dos Estados?

CITADINI: Creio que o maior problema que hoje vivem os estados e municípios é o crescimento continuado dos gastos com pessoal. Embora muitos tribunais tenham aplicado corretamente os alertas de Lei de Responsabilidade Fiscal, procurando restringir o crescimento destes gastos, em verdade, dever-se-ia, em certos casos ter maior rigor na propagação destes alertas, especialmente num quadro de queda nas receitas. Em alguns casos, isso implicaria em congelamento de reajustes de salários, contratações e o não pagamento de horas extras. Mesmo sendo medidas difíceis e problemáticas, elas devem ser defendidas com maior rigor.

A criação de um conselho fiscal da República, pairando acima dos estados e municípios, é mais uma jabuticaba. Nos outros países democráticos a competência de monitorar a gestão fiscal é feita por um órgão independente, em geral vinculado ao Senado, respeitando-se a competência de fiscalização dos órgãos de controle. Este conselho agride a federação e cria um órgão acima do próprio senado, o que é, convenhamos, uma excrecência pura.

Nov 18, 2019
admin

O desafio chileno

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O Chile vive um quadro pouco comum dentre as nações desta região. A partir dos anos setenta, os chilenos passaram por uma experiência inovadora na América Latina, que rendeu ao país os mais diversos elogios pela sua estabilidade e progresso.

Adotando conceitos claros do liberalismo econômico, inspirados na Escola de Chicago, essa experiência acabou por reorganizar o país. A economia seguia por este caminho, enquanto, no campo político, o Chile vivia uma ditadura férrea do general Pinochet. O Estado foi drasticamente reduzido por meio de privatizações em todas as áreas; saneamento, energia, educação etc. Todos os setores passaram por transformações.

A redução do Estado permitiu a limitação de impostos e o Chile alcançou a marca de 20% do PIB em carga tributária, sendo a menor de sua história. Depois de alguns anos, essa marca ficou mais baixa ainda. O regime estabelecido foi o de plena liberdade econômica, sem qualquer amarra estatal. A economia foi inteiramente aberta, e não havia barreiras para importações. Assim, junto com a redução geral do Estado, foi eliminado também todo tipo política social. Investimentos do Estado em saúde, educação e cultura recuaram sistematicamente.

Os chilenos fizeram, ainda, uma revolução na previdência, adotando um sistema de capitalização individual. Cada trabalhador era livre para escolher um fundo e fazer, mensalmente, seu depósito de poupança. Após trinta ou quarenta anos, cada poupador estaria apto a receber sua aposentadoria.

As leis laborais foram removidas, criando-se um mercado livre no mundo do trabalho.
Esta brutal mudança foi coroada de grande sucesso. A economia cresceu ano a ano, o PIB ficou cada vez maior, a produção mais eficiente e competitiva e as exportações entraram em alta. O Chile experimentava quase quarenta anos de estabilidade e progresso.

Todos os governos que sucederam a ditadura Pinochet mantiveram intocáveis os fundamentos desta revolução liberal. Mesmo governos hostis à ditadura não cansavam de elogiar a economia chilena. Aylwin, Lagos, Frei e o primeiro governo Bachelet  ­­–todos da Coalizão de Partidos pela Democracia– trabalharam com a ideia de manter as políticas econômicas e sociais vigentes. Só no último período de Bachelet, já com um governo mais à esquerda, é que se sentiu que algo não andava bem e foi iniciada uma tímida mudança. Já Piñera, presidente de centro-direita, em seus dois mandatos, jamais pensou em alterar os fundamentos do trabalho dos Chicago Boys.
O modelo chileno recebeu fartos elogios mundo afora. A baixa carga tributária, o pequeno gasto social, a estabilidade e crescimento continuado encantavam o universo econômico e político. Tudo isso ocorria num momento em que a social-democracia, modelo oposto ao liberalismo, começava a dar sinais de esgotamento na Europa.

No pós-guerra, para enfrentar a ofensiva comunista, foi adotado um caminho de manutenção da liberdade econômica aliada a um modelo com diversas vantagens sociais. Para contrapor a investida comunista, foram criadas leis de um Estado social que garantia aos trabalhadores salários, aposentadoria e acesso a serviços de saúde e educação. Com isso, e com apoio de capital americano, a Europa se recuperou, estabilizou e cresceu. A paz e o progresso forjaram países com alta qualidade de vida. Mas um Estado social custa caro. Com leis e mais leis de proteção social, a carga tributaria europeia chegou a percentuais altíssimos. A social-democracia começou a ser criticada e vista como um modelo superado. Depois da derrota eleitoral dos social-democratas em grande número de países, reapareceu, então, a ideia do modelo liberal. O conceito de um Estado menor, menos direitos sociais e menor carga tributária passou a ser predominante. Enquanto isso, na América do Sul, o Chile era o exemplo a ser destacado, por conta de seu duradouro crescimento.

Subitamente, sem aviso ou alerta, estourou há trinta dias, uma revolta ampla em todo território chileno. Sem lideranças aparentes, as grandes manifestações viraram o Chile de cabeça para baixo. Um descontentamento difuso, atordoa o governo –e também a oposição. Sem rumo, e sem saber explicar o que estava ocorrendo, o governo via as manifestações cada dia maiores e, mesmo com a dura repressão, as pessoas não recuavam. No início, o presidente Piñera proclamou uma “guerra”, apenas para recuar logo depois e começar a fazer concessões de toda sorte. Redução no preço da energia, vales, abonos e auxílios brotaram em todos os cantos, mas nada amenizou o quadro de revolta sem uma razão definida (ou, talvez, com um conjunto amplo de motivos). Com toda essa confusão em andamento, surgiu o caminho possível: convocar, rapidamente, a população e propor uma Assembleia Constituinte que substitua a Carta (e o modelo) herdado de Pinochet. O que ocorrerá depois disso, pouco se sabe.

Os chilenos buscam agora explicar o motivo pelo qual um modelo de décadas de sucesso produziu uma situação aguda de revolta como a que está em curso. Os defensores do modelo de extremo liberalismo estão perplexos e sem saber para onde ir.

A crise explodiu sem alternativas imediatas a serem implementadas. Este quadro, impensável há um mês, levará um tempo para ser totalmente explicado e solucionado. Mas, mesmo no calor da revolta, é possível buscar alguma explicação. Não há dúvidas de que a imposição do sistema previdenciário de capitalização agora cobra seu preço. Os trabalhadores não conseguiriam contribuir todos os meses para o fundo de aposentadoria, pois os aportes para a poupança eram naturalmente interrompidos em períodos de desemprego ou de falta de recursos familiares. O resultado foi simples e previsível: grande parcela da população não conseguiu atingir o tempo mínimo para conseguir a aposentadoria. Hoje, mais de metade os chilenos não consegue chegar aos requisitos necessários para se aposentar. E, dentre aqueles que se aposentaram, 70% recebem menos que um salário mínimo. Muitas seriam as razões desta revolta massiva e súbita, mas a previdência por capitalização deve, certamente, ser colocada numa posição de destaque. Outras deverão ser citadas. Saúde, educação, transporte e energia são campos em que a ação pública desapareceu ou foi muitíssimo reduzida.

A crise chilena envolve uma questão crítica dos nossos tempos para as duas correntes de pensamento.

No caso liberalismo chileno, sustentado pela ampla liberdade econômica, baixos impostos e poucos direitos sociais, como o Estado pode realizar gastos e concessões para manter a paz social, sem destruir seu modelo de crescimento econômico? E na social-democracia, vitoriosa na Europa, Canadá e (em certo sentido nos EUA), como é possível não oprimir a atividade econômica (com tantas leis e regulamentações) mas, ainda assim, conceber os programas possíveis do Estado social?

Aqui fica a questão para o futuro.