Mamãe agradece.
Um, dois, tlês, coloca o chinês!
Zizao chegou como estratégia de marketing. Quase sem jogar, virou o mais improvável anti-herói da Fiel
Bebemos a água de coco. E logo eu percebo que há uma palavra banida do vocabulário zizaozístico. Marketing. Ela exerce um estranho poder sobre ele – o poder de repentinamente deixá-lo puto. Sem hehehes. Nem precisa entender a frase inteira. Se ouve “marketing” o Zizao já sabe do que se trata. E então desapruma as sobrancelhas, murcha os lábios e diz numa tacada só, em inglês yakissoba: “É uma boa ideia o clube me trazer como estratégia de marketing. Isso o ajuda a ficar conhecido na China. Mas tem uma coisa importante: eu preciso jogar bem pro marketing funcionar. Se eu não jogo bem, as pessoas se esquecerão de tudo”. Soa quase como um grito de socorro. Deve ser chato ser visto como um negócio, um enfeite. Um vaso da dinastia Mao para mera apreciação e, às vezes, deboche. Já teve equipe de TV que levou o Zizao pra equilibrar melão na cabeça no Mercado Municipal. Outra que o fez cantar “aqui tem um bando de loucos…” e mais uma que só queria saber se ele conhecia Tufão e Carminha. “No conhece. Hehehe”, respondeu, um tanto sem jeito e assustado.
O economista Luis Paulo Rosenberg, vice-presidente do Corinthians, nunca tergiversou sobre o plano que ele mesmo inventou: “O mercado de futebol na China está crescendo rápido. Tem empresário graúdo investindo. O Zizao é o nosso jeito de fazer os chineses olharem pro Corinthians. Queremos colocar a marca Corinthians na China pra vender camisas lá, fazer amistosos lá, pré-temporadas, parcerias com empresas de lá”. Por que lá? A economia, estúpido. Lá o marfinense Drogba foi jogar por US$ 320 mil por semana. E também o argentino-fluminense Darío Conca, por US$ 60 milhões por cinco temporadas. Lá está o técnico italiano Marcelo Lippi, campeão do mundo em 2006. Lá o Barcelona belisca € 10 milhões numa pré-temporada de duas semanas. Rosenberg quer enfiar o Corinthians nessa ciranda. Calma, palmeirense… Não é tanta maluquice assim. “O mercado chinês de futebol está em formação. Os torcedores ainda não se identificam com os clubes locais, estão aprendendo a gostar do jogo. E já é o décimo campeonato com maior média de público no mundo, na frente do Brasil, o 13º. Trazendo um chinês pra cá, o Corinthians tenta se posicionar entre as marcas referenciais que estarão no imaginário desse torcedor em formação. Com estratégias complementares, como oferta de produtos do clube, plano de sócios e excursões constantes, pode dar certo”, analisa o Fernando Ferreira, sócio-diretor da Pluri Consultoria Negócios Esportivos.
Vendo-o afundado no sofá da sua sala, de camiseta, calça de abrigo e havaianas, eu acho que o Zizao não dá a mínima pra essa coisa toda. Ele quer jogar. Mais que isso. Quer mostrar que sabe jogar e assim afastar um pouco a sombra do tal marketing. E, se me permitem um pitaco neste país de técnicos de futebol e comentaristas políticos, arrisco queimar a minha língua: pelo que vi nos treinos das últimas duas semanas, digo que o Zizao sabe jogar. Não é um Messi, obviamente, ao contrário do que jurou o repórter de uma TV estatal chinesa que veio entrevistá-lo esses dias. Mas está longe de ser um perna-de-pau. Vi o Zizao marcar gols de cavadinha e de sem-pulo. Driblar com certa desenvoltura. E perder umas bolas fáceis. Acima de tudo, vi o Zizao correr pra chuchu. “Olha, quando a gente soube que viria um chinês pro time ficou todo mundo desconfiado. Pra que um chinês?! Pô, com esse monte de jogador que tem no Brasil…”, me disse numa tarde quente o lateral-esquerdo Fábio Santos. “Mas um boleiro reconhece outro bem rápido. No primeiro treino, assim que o Zizao tocou na bola, a gente sacou que ele sabe jogar.” Os meus colegas com mais tarimba em coberturas futebolísticas diziam – com razão e evocando o mestre Didi – que treino é treino e jogo é jogo. Alguns deles, porém, compartilhavam, além da beirada do campo, uma dúvida a respeito de qual seria a perna boa do Zizao. Porque num exercício de cruzamentos e finalizações, o china batia de esquerda e de direita com a mesma força e precisão.
“Direito melhor. Hehehe”, o Zizao afirma, mostrando o dedão daquele pé, onde há uma colônia de calos e bolhas a atestar seu uso mais frequente. Com 1,70m, 63 kg e uma voz fina e hesitante, o Zizao parece um menino de 16 ou 17 anos, embora tenha 24. Pelos meus cálculos, a timidez dele é 358 vezes maior que o PIB da China. Mesmo assim ele não reluta em me mostrar a casa que comprou e está pagando em prestações com o grosso do seu salário de US$ 15 mil por mês. Comprou e não alugou porque, se puder, quer ficar pra sempre no Brasil. Curioso isso, pois o que ele conheceu do País nestes oito meses se resume às duas rodovias que usa para ir e voltar do treino e aos filmes Cidade de Deus e Tropa de Elite que lhe indicaram dizendo “toma, olha como é o Brasil”. No ano que vem ele quer trazer a namorada chinesa e ir para Fernando de Noronha, que garantiram pra ele ser um “palaíso”. Mas raramente o Zizao sai de casa. É praticamente um china in box. Provou caipirinha e não gostou. Feijoada, sim. E admira a religiosidade do povo local. “Tite conversa com santa. Todos dias. Acho ouve ele. É bonito. Hehehe,” conta sobre o treinador.
Seu empréstimo ao Corinthians termina no final de 2013 e, depois disso, sabe-se lá. A casa ele achou na internet. É dessas pré-fabricadas de madeira, instalada sobre um andar térreo de alvenaria. Tudo simples, com poucos móveis e só uma traquitana made in China digna de nota: um robô-vassoura. Você aciona o bicho por controle remoto, ele faz o serviço aos rodopios, reconhecendo degraus, cantos, toda sorte de obstáculos, e no final volta sozinho pra tomada. Uma beleza. No andar de cima vive o casal de amigos chineses que mora com o Zizao. Zhengjie Zhuang, a mulher, acaba de dar à luz. Yang Jiang, o marido, está há oito anos no Brasil, ajuda Zizao como intérprete e tem um negócio de importação de coisinhas pra animais de estimação. No momento, ele aposta nas unhas de silicone para gatos. “Na China é um sucesso. Aqui ainda vai pegar.” Os três conversam em mandarim. Mas a língua materna do Zizao é o cantonês. Nela, o seu nome, Zhi Zhao (Zizao e a variante Zizão são obras corintianas), é pronunciado Tchi Tchu, de onde vem o apelido Tchu. Mas o Yang não gosta de chamá-lo assim. “É que na minha cidade Tchu quer dizer fedido.”
O Zizao mora no andar de baixo, uma parte da casa que cheira a sabão em pó. O quarto dele fica ao lado da área de serviço. É de onde ele ouve todos os dias, perto das 6 e meia da tarde, um vizinho gaiato parar o carro no portão, acelerar forte e gritar: “Vai Zizao! Vai Colíntias!” Também pensa na mãe, no pai e na irmã olhando as datas de nascimento deles que tatuou no braço direito. E onde ri sozinho ao lembrar o Pacaembu e a magnética embevecida assim cantar: “Um, dois, três! Coloca o chinês!” Isso me remete a um comentário do publicitário Washington Olivetto sobre a capacidade dos corintianos nos encantarmos com certos jogadores folclóricos do nível de um Ataliba, um Biro-Biro, um Zizao: “O time que tem um monte de anti-heróis na plateia convive melhor com seus anti-heróis de dentro do campo”. Meu amigo jornalista Celso Unzelte, grande historiador do Timão, lembra do volante cintura-dura Ezequiel e valida: “Ao contrário dos gênios, esses caras são como nós, mortais. Só que tiveram a chance de estar lá embaixo jogando. Dão tudo de si como nós daríamos”.
Retornemos ao quarto do Zizao. Enfileirados perto da porta há dois pares de chuteiras e dez tênis Nike, seu patrocinador. Uma cama, uma mesa, um violão e um criado-mudo cheio de moedas e cédulas de yuan, o dinheiro chinês. Nas paredes pintadas de laranja berrante ele pendurou com esparadrapo uns cartazes que o Tite lhe deu. Num deles, em português e inglês, se lê “Humildade. Ambição. Sabedoria”. Noutro, uma frase do craque Tostão: “Ao contrário do que diz o chavão, que o medo de perder tira a vontade de vencer, os grandes jogadores e times começam a perder mais que o habitual quando se acostumam com a vitória, o sucesso, a rotina, e perdem a ansiedade, o medo de serem derrotados”. O Zizao diz, sem tirar os olhos de um cubo mágico que tem entre os dedos: “Eu entende. Yang traduz”. Ele acerta todas as cores do brinquedo logo depois. Não gastou nem dois minutos. “Existe técnica. No bom ainda. Record mundial cinco segundos.”
Bolonas e bolinhas. E aí está. Jogar futebol, pro Zizao, é como resolver um cubo mágico. Questão de técnica e raciocínio. A intuição ele deixa pros brasileiros. Foi assim desde que aos 9 anos ele decidiu ser jogador profissional na China – um país, como lembra o Yang, que só é bom com as bolinhas pequenas e sempre viu o futebol como coisa de malandro. Mas o pai do Zizao deu aquela força. Botou o menino numa escolinha e foi atrás de livros e vídeos pra entender o jogo. Leu biografias de Zidane, Maradona, Ronaldo, Beckham. Viu gravações dos jogos dos grandes times europeus. “Trabalhar é uma necessidade da vida. E trabalhar como jogador era o sonho do Zizao, então eu dei o meu máximo apoio, como daria em qualquer outra profissão que ele escolhesse”, me diz por Skype, de Panyu, sudeste da China, o patriarca Chen Jing Xian, de 50 anos. O Yang, que traduz a conversa, garante que Jing Xian se tornou um entendido no assunto. “Quando assiste a um jogo no estádio, ele vai apontando quem está fora de posição, quem tem boa técnica e quem é ruim e, principalmente, quem está com preguiça.”
Vai ver é por isso que o Zizao treina tanto. É comum que ele durma no centro de treinamento para se exercitar na manhã seguinte, sozinho, sem ordem de ninguém. Nessas horas está sempre com a bola, chutando-a num paredão, ensaiando viradas rápidas, ou apenas correndo com ela colada nos pés. O preparador físico Fábio Mahseredjian conta que pede pra ele não exagerar, porque, se deixar, o Zizao treina em dois períodos todos os dias – por conta própria. “Eu já trabalhei com jogador croata, peruano, argentino, italiano. E te juro: o Zizao é o primeiro que eu vejo treinar sem ser obrigado. Um dia furou o pneu do carro dele e ele chegou dez minutos atrasado. Você precisava ver o tanto que esse menino se desculpou. Pediu desculpas pra comissão técnica, pros roupeiros, pro outros jogadores, para a bandeirinha de escanteio…”, diz, hiperbólico, o Mahseredjian. No momento, ele faz um trabalho de fortalecimento muscular com o Zizao, porque o Tite, em bom titenês, pediu para melhorar “o potencial de estabilização” dele. Traduzindo: o Tite, egresso da escola gaúcha de futebol, acha que o Zizao precisa aguentar mais em pé quando levar uns trancos dos adversários. Desde que chegou, ele já sofreu duas luxações no ombro – a primeira por causa de um tombo, a segunda por causa de um simples puxão na camisa – e teve que operar.
Até este domingo, o Zizao tinha jogado apenas 13 minutos. Contra o Cruzeiro, no dia 17 do mês passado. Chutou pro gol, caiu, cobrou escanteio, deu passe de calcanhar. E correu pra chuchu. Ao todo, tocou nove vezes na boa. Na melhor delas deixou um zagueiro sentado e, quando ia deixando o segundo com uma pedalada, acabou desarmado. Se passasse, ficaria sozinho na cara do gol. “Abusado esse Zizao!”, espantou-se o narrador Milton Leite. Nos dias seguintes à partida, o china ficou horas na frente da TV revendo o lance. Queria entender onde tinha errado, se havia outra saída. E, provavelmente pensando num cubo mágico, concluiu: “Melhor jogar bola baixo perna do zagueiro”. Vai Zizao! Vai Colíntias!
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