Grande Audálio!
Audálio Dantas foca na mobilização política ao narrar história de Herzog.
ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULOA família Herzog fugia do nazismo e buscava abrigo na Itália, escondendo suas origens. Era o ano de 1943. Vlado tinha pouco mais de seis anos quando foi interpelado por um homem de olhar raivoso que queria saber o seu nome. “Aldo”, respondeu.
O homem retrucou: “Como você se chama Aldo se usa sempre essa malha com a letra “V” bordada”?
Vlado não titubeou: “Ganhei esta malha do meu primo Vittorio”.
Audálio Dantas parte dessa história de infância turbulenta para narrar “As Duas Guerras de Vlado Herzog”. A primeira, travada com a família na escapada contra a ira de Hitler, resultou na perda de parentes e na migração para o Brasil em 1946.
A segunda, contra a ditadura militar instaurada em 1964, levou sua vida depois da tortura sofrida no DOI-Codi na rua Tomás Carvalhal, em São Paulo. No sábado, 25 de outubro de 1975, Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura, foi assassinado nas dependências do 2º Exército.
Só agora, há pouco mais de um mês, a Justiça determinou que a certidão de óbito fosse alterada: Herzog não cometeu suicídio; foi torturado até a morte.
A última sessão da barbárie iniciou com o torturador pedindo o envio da máquina de choque elétrico. “Tragam a pimentinha!”, berrou.
Com depoimentos, Audálio reconstitui a trajetória de Herzog: o tumulto da infância, os estudos no Brasil, o casamento com Clarice, a chegada dos filhos, o trabalho na BBC de Londres, o interesse por cinema, a aproximação com o Partido Comunista.
Mas o forte do livro está no relato das semanas que antecederam a morte e nas discussões que levaram à realização do ato ecumênico em memória de Herzog -então a maior manifestação contra a ditadura desde o AI-5.
Audálio era então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e esteve no centro dos acontecimentos. Viu a onda de terror desencadeada pelo general Ednardo Mello no comando do 2º Exército e os seus embates com o governador paulista Paulo Egydio.
Os personagens mais duros do regime buscavam mais espaço no poder e alegavam enxergar comunistas por todo o lado: na Polícia Militar e nos jornais; em figuras como o empresário José Mindlin, então secretário da Cultura, e o cardeal Paulo Evaristo Arns. É nesse contexto que Audálio descreve a onda de prisões daquelas semanas.
Foram 63 policiais presos -o tenente Ferreira de Almeida morreu no DOI-Codi. Entre os jornalistas, foram presos 12 -incluindo Vlado, que se apresentou voluntariamente no quartel onde seria morto.
“As pessoas sumiam de uma hora para a outra”, lembra o autor, relatando sequestros, depoimentos de torturados e fugas. O sindicato protestava e receava a intervenção dos militares. Poderia fazer mais?
No seu último encontro com Vlado, Audálio recorda que a discussão foi sobre esse ponto. Vlado pedia um maior envolvimento dos jornalistas nos protestos e saiu da conversa com “uma visível expressão de desalento”, conta o autor.
A notícia da morte de Vlado foi um choque. No enterro apressado, Ruth Escobar rompeu o silêncio: “Até quando vamos continuar suportando tanta violência?”. Na saída do cemitério, alguém gritou: “Vamos para o sindicato!”.
A partir daí, o sindicato passou a realizar assembleias e concentrou o debate contra a ditadura. Audálio relata as pressões dos militares para conter manifestações e dos que queriam uma ação mais forte da entidade. Do cardeal Arns ouviu a indagação: “Não sei se não é hora de um protesto mais forte. Quem sabe, sair pela rua?”.
Audálio, 80, defende que a linha ponderada do sindicato foi correta e o transformou “numa importante trincheira, espaço para uma reação organizada contra a repressão”.
O autor também analisa a cobertura da imprensa no período. “Jornais que haviam se calado durante anos diante dos crimes da ditadura abriam espaço para o noticiário em páginas inteiras e alguns chegavam a ousar comentários, em artigos assinados, sobre os ‘excessos’ dos órgãos de repressão política e o desrespeito aos direitos humanos”.
Segundo Audálio, “a maioria [dos donos dos grandes jornais] havia apoiado o golpe de 1964 e convivera bem com o regime. Engoliram a censura até perceber que a mercadoria que entregavam aos leitores -a informação- começava a correr perigo de não ser aceita, por falta de credibilidade”.
E anota: “Depois do assassinato de Herzog, já não era possível limitar a notícia da morte de presos políticos aos termos dos comunicados oficiais. As versões de suicídio ou de morte ’em confrontos’ com as forças de segurança já não eram aceitas sem discussão”, escreve.
MULTIRRELIGIOSO
Audálio narra os detalhes da preparação do culto multirreligioso que lotou a Sé: a operação militar para impedir a presença de manifestantes, os agentes infiltrados, as pressões sobre os religiosos.
Um diálogo do autor com dom Helder Câmara, que não quis falar no evento, resume a história. “O senhor não quis falar?”, perguntou Audálio. Resposta do arcebispo: “Há momentos, meu filho, em que o silêncio diz tudo. A ditadura começou a cair hoje”.
Dois meses e meio depois, o operário Manoel Fiel Filho morreu no DOI-Codi. Não houve manifestações de protesto. Só então o general Ednardo foi demitido do comando do 2º Exército. A ditadura duraria até 1985.
AS DUAS GUERRAS DE VLADO HERZOG
AUTOR Audálio Dantas
EDITORA Civilização Brasileira
QUANTO R$ 39,90 (406 págs.)
AVALIAÇÃO bom
www.folha.com.br
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