Apr 4, 2013

Questão boliviana II

 

Por Kevin, advogado rebate Gobbi e pede encontro pessoal com clube

 

Bruno Ceccon, Enviado EspecialOruro (Bolívia)

O gabinete do advogado Jorge Ustarez Beltrán, secretário-geral da Alcaldía de Oruro, é enfeitado por mártires. Atrás da mesa em que recebe dezenas de pessoas diariamente, o tio de Kevin e advogado da família pendurou imagens de Simon Bolívar e Antonio José de Sucre, dois heróis da independência boliviana, e de Jesus Cristo. Entre os três ícones, o representante dos parentes do garoto de 14 anos atingido de maneira fatal por um sinalizador disse esperar que o sobrinho não tenha morrido em vão.

“A questão do Kevin não é apenas o problema particular de uma família. O objetivo da família é a reparação do dano e marcar um ponto histórico no futebol para impedir que essas coisas se repitam”, declarou Ustarez. Durante a entrevista exclusiva à Gazeta Esportiva.net, ele lembrou que a tragédia levou à gestação de uma lei para aumentar a segurança nos estádios bolivianos. “Acreditamos que a morte do Kevin tenha contribuído para esse avanço”, declarou o advogado.

Bruno Ceccon/Gazeta Press

O advogado Jorge Ustarez Beltrán, tio de Kevin, representa a família do garoto no processo

Atingido por um sinalizador que partiu da torcida do Corinthians no jogo contra o San José, Kevin morreu na noite do dia 20 de fevereiro. Há cerca de duas semanas, Limbert Beltrán, pai do garoto, conversou com um representante do Corinthians pelo telefone no primeiro contato oficial entre as partes. A conferência, intermediada por um intérprete, foi infrutífera, o que leva Jorge Ustarez a pedir um encontro pessoal com diretores do clube para tentar chegar a um acordo. 

Eloquente, o representante da família de Kevin escolheu as palavras com cuidado para se comunicar com o público brasileiro. Ele contestou as recentes declarações de Mário Gobbi, presidente do Corinthians, e lamentou a situação dos 12 brasileiros detidos desde o dia 20 de fevereiro na penitenciária de San Pedro. Por outro lado, desconsiderou a confissão do menor que assumiu a autoria do disparo e disse acreditar que o verdadeiro culpado está no grupo recluso em Oruro.

Gazeta Esportiva.net – No último domingo, o presidente Mário Gobbi se exaltou ao falar sobre os 12 corintianos presos em Oruro. Ele contou não conseguir dormir pela “brutalidade” cometida contra os torcedores e disse que isso era maior do que a morte do Kevin. Como advogado e integrante da família, como o senhor recebe essa afirmação?
Ustarez – Acreditamos que nenhuma determinação feita pela sociedade pode ser mais importante do que a vida humana. O caminho que o presidente deveria percorrer, se é que esse tema está realmente lhe tirando o sono, é o da cooperação para que se averigue a verdade. Nesse momento, só a família está fazendo um chamado público para que todos averiguem a verdade juntos. Essa deveria ser uma tarefa conjunta dos parentes dos presos em Oruro, dos próprios presos e do advogado de defesa, para mostrar um clima de cooperação, e não de confrontação. A responsabilidade do presidente de um clube não é apenas fazer partidas mas também responder por todas as pessoas envolvidas em seus espetáculos. O futebol não se limita a 22 pessoas e um árbitro dentro de um campo de jogo. Há todo um contexto cultural, social e econômico que determina a sorte de muitas famílias no mundo inteiro. A morte do Kevin precisa servir para que tenhamos um novo enfoque dos espetáculos de futebol. O governo boliviano compreendeu dessa maneira e acho que o Corinthians deveria fazer o mesmo.

Fernando Dantas/Gazeta Press

Presidente Mário Gobbi demonstrou irritação com a situação dos 12 corintianos detidos na Bolívia

GE.net – Até o momento, como o senhor avalia o comportamento do Corinthians desde a morte do Kevin, ocorrida no dia 20 de fevereiro? 
Ustarez – Quero dizer ao presidente que também estamos preocupados, mas temos que manifestar isso de frente, de maneira formal. Não recebemos nem um cartão de condolências da parte do presidente no enterro do Kevin. E isso dói, porque foi um garoto que deu sua vida não apenas para ir ao estádio. Quero dizer ao presidente que a intenção do Kevin ao viajar de Cochabamba para Oruro foi ver o melhor time do mundo. O San José, a gente pode ver em todos os finais de semana. Ele queria ver o melhor time do mundo, que é um orgulho não apenas para o povo brasileiro mas para todos os latino-americanos. Esperamos que essas palavras cheguem ao presidente e que deixemos qualquer diferença de lado para sanar a dor que está embargando tantas famílias. Ao mesmo tempo, comunico ao povo brasileiro que vamos exigir o respeito às leis. Tenham absoluta certeza de que os 12 acusados estão cumprindo os mesmos procedimentos que qualquer outro preso. Se os responsáveis pela morte do Kevin fossem torcedores do San José, a família teria agido da mesma maneira. 

GE.net – Qual é exatamente o sentimento da família do Kevin em relação aos 12 presos em Oruro? O senhor acredita que todos estão de fato envolvidos na morte do garoto? 
Ustarez – São aspectos que nos preocupam. A família tem apenas um objetivo: saber quem é o responsável pela morte do Kevin, que as pessoas envolvidas nesse acontecimento dramático assumam a responsabilidade. Estamos extremamente preocupados pelo lado humano, porque até o momento não tivemos contato com a família dos 12 detidos e tampouco com quem está dirigindo a defesa do grupo. Achamos que já é hora de eles se pronunciarem. Temos a consciência de que os 12 não são os autores diretos do crime, alguns são realmente inocentes, mas entendemos que dentro desse círculo se sabe quem é o autor material desse terrível acontecimento. Vamos tentar nos comunicar com a Embaixada do Brasil para intermediar um contato com a família dos detidos e com a defesa deles, para que possamos averiguar de uma vez o que aconteceu. Não entendemos a atitude dos presos. É hora de dizer quem foi o autor e que os danos causados à família e ao povo de Oruro sejam reparados.

Djalma Vassão/Gazeta Press

No Brasil, menor de idade assumiu autoria do disparo do sinalizador no estádio em Oruro

GE.net – Particularmente, o senhor não acredita que o menor de idade que se apresentou como responsável pelo disparo do sinalizador seja o verdadeiro responsável?
Ustarez – Do ponto de vista profissional, devo dizer que a autoincriminação não é considerada na legislação boliviana. Ou seja, uma pessoa não pode se atribuir o cometimento de um delito ou a morte de alguém sem provar. Se uma pessoa deseja assumir a morte de alguém, precisa provar isso técnica e cientificamente. Uma declaração simples de autoincriminação não significa nada para a legislação boliviana. Ninguém pode ser declarado culpado antes de essa condição ter sido demonstrada. A presunção de inocência é um princípio garantido na nossa legislação. 

GE.net – Já houve um primeiro contato entre o Corinthians e a família do Kevin. De acordo com o clube, os Beltrán recusaram a “ajuda humanitária” oferecida. Qual foi exatamente a proposta do Corinthians? 
Ustarez – Nós também não entendemos muito bem. Houve uma primeira aproximação via telefone, com a intermediação de um tradutor. Essa conferência não foi muito bem compreendida pela família. Sem dúvida, nós não dispensaríamos qualquer gesto humanitário. Tanto o Corinthians quanto o San José também são responsáveis pelo que acontece em seus espetáculos. Os corintianos que estão presos já declararam às autoridades bolivianas que são financiados e organizados pelo clube. Não recusamos absolutamente nenhuma conversa com o Corinthians. O que desejamos é que, se vai existir uma conversa, que ela seja feita de maneira formal e pelos canais adequados. Se o Corinthians realmente tem a intenção de colaborar com a família, deve se manifestar de maneira formal para poder efetivar uma colaboração. De qualquer forma, agradecemos ao clube pela preocupação.

GE.net – Um canal adequado seria um encontro pessoal com um representante do Corinthians? 
Ustarez – Talvez para um primeiro contato a via telefônica tenha sido adequada, mas o idioma cria limitações. Estamos com as portas abertas. Eles poderiam ver pessoalmente a dimensão do que aconteceu com o Kevin, os efeitos de dor que deixou na família e o efeito social que causou na comunidade de Oruro. Acho que seria importante o clube reservar um tempo para conhecer essa outra realidade. Esperamos que haja um segundo contato. Se as intenções do clube são realmente saudáveis e sinceras, suponho que tentarão se comunicar novamente. Gostaríamos de sentir o que pensa o Corinthians, ver em que grau foram afetados. Esperamos que não tenha sido apenas um momento ruim pela obrigação de pagar uma multa à Conmebol.

GE.net – Um eventual acordo entre a família do Kevin e o Corinthians poderia influenciar de alguma maneira na situação dos 12 torcedores detidos em Oruro? 
Ustarez – Isso é algo totalmente separado do processo contra as 12 pessoas envolvidas no fato. As conversas com o Corinthians têm outro caráter, outro âmbito. Enquanto não recebermos a colaboração dos que estão detidos e das pessoas responsáveis pela defesa, o processo legal vai seguir seu curso. Os pais do Kevin precisam saber quem causou a morte do seu filho. Para condená-lo, perdoá-lo ou simplesmente para fazer uma oração. Esse é um princípio moral básico que deve ser entendido por todos.

AFP

Brasileiros estão presos em Oruro desde a noite da partida, no dia 20 de fevereiro (Foto: Aizer Raldes/AFP)

GE.net – Em casos desse tipo, é comum que a família da vítima pleiteie uma indenização financeira. A família do Kevin deseja ser indenizada pelo Corinthians? 
Ustarez – Eu não posso dar essa resposta, porque é uma decisão íntima dos pais do Kevin. Durante todo o processo, não baseamos a defesa em recuperação de danos econômicos, mas sim nas investigações e na averiguação da verdade. Acho que isso mostra a linha que vem sendo adotada pela família. O Kevin era o irmão maior de três menores, uma peça importante no núcleo familiar, na criação de seus irmãos. São questões que devem ser valorizadas tanto pela Justiça, quanto pelas pessoas que participaram de forma direta ou indireta do crime, para que isso não fique assim. 

GE.net – Na conversa que teve com o representante do Corinthians, o pai do Kevin chegou a estabelecer um valor de indenização? 
Ustarez – Não. Nessa conversa, ficou combinado marcar um segundo contato para que possam formalizar qual seria a intenção real do clube, o que ainda não aconteceu. Na realidade, esse primeiro contato foi simplesmente de aproximação. O representante do clube até advertiu o pai do Kevin que não tinha poder de decisão. Devemos dizer que, por meio desse emissário, o clube manifestou sua profunda dor e desconforto. Agradeço por isso, mas não se chegou a conclusão alguma.

GE.net – No sábado, Brasil e Bolívia disputarão um amistoso com parte da renda revertida à família do Kevin. Como os Beltrán receberam a iniciativa? 
Ustarez – Foi uma amostra clara de responsabilidade, cooperação sincera e totalmente saudável da CBF. Acho que esse é um gesto que será valorizado não apenas pela família do Kevin mas por todo o povo boliviano. Agradecemos pelo desprendimento e acho que essa iniciativa expressa a posição do povo brasileiro como um todo. O amistoso entre Bolívia e Brasil mostrará ao mundo que a morte de um torcedor não é algo que possa acontecer nos estádios. Deve ser um momento de reflexão. Esteja onde estiver, o Kevin seguramente está agradecido aos brasileiros que sabem que sua morte não está restrita a um processo legal. É algo muito além, que vai criar consciência nos dirigentes, jogadores e torcedores.

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1 Comment

  • Palavras muito bonitas e totalmente vazias.
    É claro, óbvio e cristalino qual é o ponto histórico que ele e a família buscam: uma bela e gorda indenização do clube mais rico das Américas. É agora que eles enchem o bolso e tiram o pé da lama, ou nunca mais. É só para isso que servirá a morte do Kevin: lucro para a família e para o advogado.
    Eu ficarei extremamente indignado se a diretoria fechar qualquer acordo com eles. Se eles quiserem justiça para a morte do Kevin estou 100% ao lado da família e continuo solidário a dor da perda de um ente querido. Mas se eles quiserem reparação financeira – e é isso que dá toda a dica das palavras do advogado – que processem as torcidas organizadas que estão com seus membros presos na Bolívia.

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