Dia Nacional de luto. Morre Paulo Vanzolini
Morre o cientista do samba
Com pneumonia, compositor Paulo Vanzolini faleceu neste domingo, 28, em São Paulo
O compositor e zoólogo Paulo Vanzolini, de 89 anos, morreu às 23h35 deste domingo, 28. Vanzolini passou mal na quinta-feira e foi internado na UTI do Hospital Albert Einstein com pneumonia extensa. Ele foi sedado e passou o final de semana inconsciente.
O compositor faria um show na sexta e no sábado no clube Casa de Francisca, no Jardim Paulista, com acompanhamento de sua companheira, a cantora Ana Bernardo, e de amigos como o violonista Ítalo Perón e o pianista e cartunista Paulo Caruso. Celebraria os seus 89 anos, completados no dia 25.
O samba-canção Ronda, composto por ele, foi gravado por Inezita Barroso em agosto de 1953, sete anos depois de composto. Ele e a mulher, a cantora Ana Bernardo, acompanhavam Inezita na gravação de seu primeiro disco no Rio, Moda de Pinga. Ela precisou de uma música de última hora e o autor lhe ofereceu Ronda. “Samba é paciência”, sempre repetia Vanzolini. Em conversa com o pesquisador Assis Ângelo, por ocasião de um de seus últimos shows, em 2009, ele contou que levou 25 anos para terminar a letra de Pedacinhos do Céu.
Ele foi talvez o mais graduado intelectual entre os sambistas brasileiros de todos os tempos: fez doutorado em Harvard, era pesquisador do Instituto de Zoologia, herpetólogo (especialista em répteis) e professor emérito da Universidade de São Paulo. Foi também o autor da lei que criou a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Nascido no Cambuci, no dia 25 de abril de 1924, a dupla militância (na música popular e na ciência) lhe rendeu elásticas relações: Chico Buarque gravou duas canções do primeiro disco com músicas de Vanzolini; e o médico e escritor Dráusio Varella foi seu aluno na USP e cientistas do quilate de Theodosius Dobzhansky, Emest Mayr e Aziz Ab’Saber eram seus amigos. Foi parceiro de Eduardo Gudin, Elton Medeiros, Paulinho Nogueira, entre muitos outros.
Ele começou a compor seus sambas tipicamente paulistanos ainda no início dos anos 40. A obra é relativamente pequena – pelo menos a parte que o autor, perfeccionista, deixou vir à tona: é composta de aproximadamente 65 canções. Delas, 52 podem ser conhecidas nos quatro CDs da caixa Acerto de Contas, que a gravadora Biscoito Fino lançou em 2003. Estão lá todas as mais famosas: Ronda, Volta por Cima, Praça Clóvis, Pedacinhos do Céu(letra de Vanzolini sobre melodia de Waldir Azevedo).
Em 2011, a gravadora EMI lançou Onze Sambas e uma Capoeira, gravações recuperadas do acervo da antiga Copacabana, de um disco lançado em 1967. No álbum, destacam-se entre os intérpretes um imberbe Chico Buarque (em Samba Erudito e Praça Clóvis) e sua irmã Cristina Buarque (em Chorava no Meio da Rua), além dos arranjos de um certo Antônio Pecchi Filho, mais tarde consagrado como Toquinho.
Em 2004, ano em que chegou a ser internado com um problema cardíaco, o compositor (que foi pai de cinco filhos e contava oito netos e um bisneto na família), convidado pela reportagem do Estado, topou refazer um percurso sentimental pela São Paulo em que tinha vivido a juventude. Começou falando da várzea do Rio Pinheiros, onde aprendeu a nadar, iniciando-se no Clube Germânia (depois Clube Pinheiros, que tinha piscinas naturais: um gradeado de madeira dentro do rio). Relembrou as partidas de futebol na várzea. “Jogava no campo do Ítalo-Lusitano. Era um alfo esquerdo (lateral esquerdo).”
Da adolescência, Vanzolini dizia se lembrar do clarão que via na direção da Avenida Paulista. “Era o céu vermelho de quando queimavam o café que não era exportado.” Na Revolução de 32, recordou que na sua casa só se falava mal de Getúlio Vargas. “Era um antipaulista, um cara horroroso.” Nos estudos, trocou o Colégio Rio Branco pelo Ginásio do Estado, “mil vezes melhor que qualquer escola particular”.
“Meu pai dizia o seguinte: ‘Não vá para uma universidade, vá para um professor. Procure o melhor do mundo, e se ele não te aceitar, procure o segundo melhor’. O melhor me aceitou, mas até hoje eu guardo a carta que escrevi para ele. Era uma carta tão imbecil que a cada vez que eu vou ficando mais vaidoso, eu leio aquela carta para me pôr no lugar”, disse.
Foi na época do Ginásio do Estado que começou sua vida adulta, contou ao repórter. Os jovens estudantes só queriam saber de jogar sinuca no Edifício Martinelli, beber “samba em Berlim” (guaraná com cachaça) e admirar os prostíbulos, que ficavam entre as Ruas Vitória e Aurora. “Era zona livre, meretrício de portas abertas”. Ele vivia ali sua iniciação artística, recitando monólogos e acompanhando caravanas artísticas estudantis.
Aos 21 anos, alistou-se no Exército, uma carreira curta – chegou a cabo. Militar, rodava as ruas do centro a cavalo, duas vezes por semana, patrulhando as feéricas Avenidas Ipiranga e São João com um revólver calibre 45 na cintura. Dali surgiu a inspiração para compor Ronda, o seu grande sucesso.
“A ronda é uma enganação. A mulher começa dando a impressão de que está procurando um cara, mas não é para amar e sim matar”, explicou o compositor, que sempre buscava relativizar a importância da própria obra-chave. A boemia pelas ruas, bares e praças da capital eram sua inspiração mais recorrente, e resultaram em canções emblemáticas, como Praça Clóvis. Manteve amizade com Adoniran Barbosa, com os maestros de tango do centro, desfrutou da vida desregrada em torno da Avenida São João e do Largo do Paiçandu.
Apesar de oriundo de uma família burguesa, era mais seduzido pela vida nos bares, no meio do povo. Nos anos 1950, frequentava o chamado Clubinho (Clube dos Artistas e Amigos dos Artistas). Era point da intelectualidade paulistana da época: Tarsila do Amaral, Sergio Milliet, Alfredo Volpi e Paulo Rossi. Ficava no porão do Instituto de Arquitetos do Brasil, na Rua Bento Freitas.
Em 1963, Vanzolini compôs Volta por Cima, outro grande sucesso, gravado pelo cantor Noite Ilustrada. Era época do regime militar, e os versos “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima” ganharam ares revolucionários. Nos anos seguintes, tornou-se habitué do bar O Jogral, de Luís Carlos Paraná, seu parceiro violonista. “Como autor de letra e música ele é o oposto da loquacidade, porque não espalha, concentra. Tem a capacidade de achados verbais que fazem a palavra render o máximo. Vanzolini é um mestre de muitas faces”, disse o crítico Antônio Cândido sobre o amigo.
Vanzolini trabalhou na TV Record, na época dos famosos festivais da canção. Formado depois em Medicina, foi trabalhar no Hospital das Clínicas, onde teve, entre seus alunos, Dráuzio Varella. Nunca foi um homem de opiniões médias, sempre foi muito agudo. Alfinetou Caetano e Gil a vida toda. “E se pegarem uma música sua e colocarem batida eletrônica em cima?”, lhe perguntaram certa vez. “Não tem problema nenhum. Já fizeram muito pior do que isso. Maria Bethânia gravou Ronda, por exemplo. Ela não é uma cantora, é uma declamadora”.
Conheceu Aracy de Almeida e desfrutou da companhia de suas intérpretes favoritas, Marcia e Inezita Barroso. Depois, veio a experiência acadêmica. “A USP deu um foco para a mocidade pensar, vibrar, ser contra ou a favor, pensar. Quando fui fazer doutorado em Harvard (voltou dos Estados Unidos no início dos anos 1950), me dispensaram de metade das disciplinas.”
Ex-diretor do Museu de Zoologia da USP, na Avenida Nazaré (para onde ia de bonde), Vanzolini montou uma respeitada coleção de 130 mil répteis e anfíbios. Sua biblioteca pessoal tem mais de 50 mil volumes, é a maior da América Latina e ele planejava doá-la à universidade. Sua casa é repleta de obras de amigos de juventude: Marcelo Grassman, Heitor dos Prazeres, Carybé, Aldemir Martins, Maria Leontina, Milton Dacosta, Bruno Jorge.
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