Por fora bela viola, por dentro pão bolorento
Justiça francesa desmascara esquema de fraude fiscal no futebol
Clubes como PSG e Real Madrid, empresas como a Nike e até Valcke são acusados de participar de caixa dois
GENEBRA – Contratos falsos, contas secretas em paraísos fiscais, como Genebra, Luxemburgo e Bahamas, empresas de fachada e a suspeita do envolvimento de nomes como Paris Saint-Germain, Real Madrid, Nike, Ronaldinho Gaúcho, Anelka e até um certo Jérôme Valcke, hoje o secretário-geral da Fifa. Documentos de investigações realizadas pela Justiça francesa nos últimos anos, obtidos com exclusividade pelo Estado, revelam a criação de um esquema generalizado de caixa dois no futebol europeu. A suspeita na maioria dos casos é de fraude fiscal e crimes financeiros.
Parte dos casos veio à tona na imprensa europeia. No ano passado, os ex-presidentes do PSG, Laurent Perpere e Francis Graille, foram condenados à prisão em Paris. A Nike também teve um de seus executivos condenado. Já Valcke chegou a prestar depoimento, mas nunca foi indiciado e não sofreu qualquer tipo de punição. Os jogadores também foram inocentados.
O que a investigação revelou foi a criação de uma rede paralela de contratos no futebol. No início deste ano, o Barcelona se viu envolvido em uma enorme polêmica causada pela contratação de Neymar, com alguns contratos obscuros, mas essa prática está disseminada desde o fim dos anos 90, com a participação de empresas multinacionais, canais de televisão, clubes, agentes de jogadores e até dos próprios atletas.
O motivo da existência da manipulação financeira é o esforço de todos os atores do futebol para não pagar impostos e esconder o real volume de dinheiro que circula pelos clubes. O esquema usava diversos tipos de manobras financeiras para promover a sonegação fiscal.
SUPERFATURAMENTO
Uma das manobras era anunciar a compra de um jogador por um valor acima da realidade. O PSG, por exemplo, pagava o valor fictício ao clube que havia vendido o atleta. O dinheiro, em seguida, era usado para o pagamento do salário do jogador. Assim, ele e o clube não pagavam impostos sobre vários meses de salários.
Os documentos mostram como o esquema de superfaturamento foi usado por PSG e Real Madrid na transferência de Anelka. Outro caso foi a compra do argentino Tuzzio pelo Olympique de Marselha. Parte de seu salário ia para uma conta em Nova York.
Uma outra forma de evadir impostos era por meio da Nike, patrocinadora do PSG. A multinacional, segundo a Justiça, pagava os salários dos jogadores, alegando que se tratava de pagamento de contratos de imagem. Esses contratos, sempre assinados em bancos de centros off-shore, eram fictícios, segundo depoimentos.
Entre 1998 e 2005, 33 contratos foram assinados pela Nike com jogadores do PSG, entre eles Ronaldinho. “Uma auditoria revela que a Nike aceitou pagar parte dos salários dos jogadores contratados na forma de contratos de imagem para aliviar os impostos do clube”, indica a Justiça francesa.
Diante da Justiça, o brasileiro André Luiz admitiu que o contrato com a Nike do qual ele se beneficiou enquanto jogava no PSG era um complemento de salário. O dinheiro era depositado em uma conta em Luxemburgo e, quando o contrato foi assinado, a Nike sequer enviou um representante para o ato. André Luiz foi vendido pelo Tenerife para o PSG em 2002.
Jaubert Olivier, responsável pelo marketing da Nike até 2003, admitiu diante dos juízes que se tratava de “salários ocultos de jogadores”. Segundo ele, os diretores e até o presidente da Nike sabiam do esquema.
VALCKE
Para restituir a Nike, o PSG e a multinacional inventavam multas a serem pagas pelo clube. Uma das desculpas era que o atleta tinha jogado com uma chuteira de outra marca. Só entre 2003 e 2004, o PSG pagou mais de 1,2 milhão de euros (R$ 3,6 milhões) em multas fictícias para a Nike.
Essa restituição era feita por meio de um esquema financeiro complexo. O grupo de mídia Canal Plus, na época dono do PSG, criou uma filial, a Sport Plus, responsável por comprar direitos de jogadores. Cada vez que uma multa era inventada para justificar um pagamento à Nike, a Sport Plus era usada para fazer a ligação. Quem recebia o dinheiro era a Nike European Operations Netherlands BV, filial da empresa na Holanda.
Os documentos da Justiça francesa, de 2009, revelam que o diretor adjunto da Sport Plus nos fim dos anos 90 era Jérôme Valcke. Em um depoimento, o francês afirmou que a Sport Plus “foi criada no momento do projeto de transferência de Ronaldinho”. Segundo Valcke, a empresa “tinha como vocação administrar os direitos de imagem de certos jogadores do PSG”. Se Valcke jamais foi acusado pelas práticas, cartolas do PSG foram indiciados.
INTERMEDIÁRIOS
Outro truque foi criado para ocultar salários: o uso de agentes de jogadores. Os clubes repassavam aos intermediários uma parte do dinheiro que deveria ser usado para pagar os salários, alegando que se tratava de comissão. Segundo as investigações, esse dinheiro era depois repassado aos atletas em contas em paraísos fiscais. Isso ocorreu na contratação de Sorín pelo clube francês e existem suspeitas em relação aos brasileiros Raí, Ricardo Gomes e Valdo.
O atacante Christian, na transferência do PSG para o Bordeaux, recebeu 1,3 milhão de euros (R$ 3,9 milhões) em uma conta aberta na Ilha da Madeira. Um outro depósito do mesmo valor foi realizado em uma conta aberta em Lausanne, de uma empresa com sede nas Bahamas.
A Justiça encontrou uma transferência de 762 mil de euros (R$ 2,3 milhões) para uma conta de Zurique chamada Dani Geneva. A investigação mostrou que essa era a conta que a Sport Plus usava em conjunto com a Nike para pagar os salários do nigeriano Okocha e do lateral Paulo César.
OUTRO LADO
Contactada pelo Estado, a atual gestão do PSG disse apenas que o caso se trata de “questões de administrações passadas”. A Nike insistiu que atua de forma “íntegra”.
“A Nike foi absolvida pela corte francesa de acusações relacionadas às questões de direito de imagem dos atletas, confirmando que a relação entre a Nike da França e o PSG nunca foi fraudulenta”, disse a assessoria de imprensa da empresa.
Em janeiro de 2013, a companhia foi multada em 80 mil de euros (R$ 243 mil) e um de seus diretores acabou condenado à prisão. A Nike recorreu da decisão.
A Fifa evitou fazer comentários, ainda que um dos citados no caso, Valcke, seja hoje o número dois da entidade.
www.estadaoi.com.br
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