Nov 18, 2019
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O desafio chileno

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O Chile vive um quadro pouco comum dentre as nações desta região. A partir dos anos setenta, os chilenos passaram por uma experiência inovadora na América Latina, que rendeu ao país os mais diversos elogios pela sua estabilidade e progresso.

Adotando conceitos claros do liberalismo econômico, inspirados na Escola de Chicago, essa experiência acabou por reorganizar o país. A economia seguia por este caminho, enquanto, no campo político, o Chile vivia uma ditadura férrea do general Pinochet. O Estado foi drasticamente reduzido por meio de privatizações em todas as áreas; saneamento, energia, educação etc. Todos os setores passaram por transformações.

A redução do Estado permitiu a limitação de impostos e o Chile alcançou a marca de 20% do PIB em carga tributária, sendo a menor de sua história. Depois de alguns anos, essa marca ficou mais baixa ainda. O regime estabelecido foi o de plena liberdade econômica, sem qualquer amarra estatal. A economia foi inteiramente aberta, e não havia barreiras para importações. Assim, junto com a redução geral do Estado, foi eliminado também todo tipo política social. Investimentos do Estado em saúde, educação e cultura recuaram sistematicamente.

Os chilenos fizeram, ainda, uma revolução na previdência, adotando um sistema de capitalização individual. Cada trabalhador era livre para escolher um fundo e fazer, mensalmente, seu depósito de poupança. Após trinta ou quarenta anos, cada poupador estaria apto a receber sua aposentadoria.

As leis laborais foram removidas, criando-se um mercado livre no mundo do trabalho.
Esta brutal mudança foi coroada de grande sucesso. A economia cresceu ano a ano, o PIB ficou cada vez maior, a produção mais eficiente e competitiva e as exportações entraram em alta. O Chile experimentava quase quarenta anos de estabilidade e progresso.

Todos os governos que sucederam a ditadura Pinochet mantiveram intocáveis os fundamentos desta revolução liberal. Mesmo governos hostis à ditadura não cansavam de elogiar a economia chilena. Aylwin, Lagos, Frei e o primeiro governo Bachelet  ­­–todos da Coalizão de Partidos pela Democracia– trabalharam com a ideia de manter as políticas econômicas e sociais vigentes. Só no último período de Bachelet, já com um governo mais à esquerda, é que se sentiu que algo não andava bem e foi iniciada uma tímida mudança. Já Piñera, presidente de centro-direita, em seus dois mandatos, jamais pensou em alterar os fundamentos do trabalho dos Chicago Boys.
O modelo chileno recebeu fartos elogios mundo afora. A baixa carga tributária, o pequeno gasto social, a estabilidade e crescimento continuado encantavam o universo econômico e político. Tudo isso ocorria num momento em que a social-democracia, modelo oposto ao liberalismo, começava a dar sinais de esgotamento na Europa.

No pós-guerra, para enfrentar a ofensiva comunista, foi adotado um caminho de manutenção da liberdade econômica aliada a um modelo com diversas vantagens sociais. Para contrapor a investida comunista, foram criadas leis de um Estado social que garantia aos trabalhadores salários, aposentadoria e acesso a serviços de saúde e educação. Com isso, e com apoio de capital americano, a Europa se recuperou, estabilizou e cresceu. A paz e o progresso forjaram países com alta qualidade de vida. Mas um Estado social custa caro. Com leis e mais leis de proteção social, a carga tributaria europeia chegou a percentuais altíssimos. A social-democracia começou a ser criticada e vista como um modelo superado. Depois da derrota eleitoral dos social-democratas em grande número de países, reapareceu, então, a ideia do modelo liberal. O conceito de um Estado menor, menos direitos sociais e menor carga tributária passou a ser predominante. Enquanto isso, na América do Sul, o Chile era o exemplo a ser destacado, por conta de seu duradouro crescimento.

Subitamente, sem aviso ou alerta, estourou há trinta dias, uma revolta ampla em todo território chileno. Sem lideranças aparentes, as grandes manifestações viraram o Chile de cabeça para baixo. Um descontentamento difuso, atordoa o governo –e também a oposição. Sem rumo, e sem saber explicar o que estava ocorrendo, o governo via as manifestações cada dia maiores e, mesmo com a dura repressão, as pessoas não recuavam. No início, o presidente Piñera proclamou uma “guerra”, apenas para recuar logo depois e começar a fazer concessões de toda sorte. Redução no preço da energia, vales, abonos e auxílios brotaram em todos os cantos, mas nada amenizou o quadro de revolta sem uma razão definida (ou, talvez, com um conjunto amplo de motivos). Com toda essa confusão em andamento, surgiu o caminho possível: convocar, rapidamente, a população e propor uma Assembleia Constituinte que substitua a Carta (e o modelo) herdado de Pinochet. O que ocorrerá depois disso, pouco se sabe.

Os chilenos buscam agora explicar o motivo pelo qual um modelo de décadas de sucesso produziu uma situação aguda de revolta como a que está em curso. Os defensores do modelo de extremo liberalismo estão perplexos e sem saber para onde ir.

A crise explodiu sem alternativas imediatas a serem implementadas. Este quadro, impensável há um mês, levará um tempo para ser totalmente explicado e solucionado. Mas, mesmo no calor da revolta, é possível buscar alguma explicação. Não há dúvidas de que a imposição do sistema previdenciário de capitalização agora cobra seu preço. Os trabalhadores não conseguiriam contribuir todos os meses para o fundo de aposentadoria, pois os aportes para a poupança eram naturalmente interrompidos em períodos de desemprego ou de falta de recursos familiares. O resultado foi simples e previsível: grande parcela da população não conseguiu atingir o tempo mínimo para conseguir a aposentadoria. Hoje, mais de metade os chilenos não consegue chegar aos requisitos necessários para se aposentar. E, dentre aqueles que se aposentaram, 70% recebem menos que um salário mínimo. Muitas seriam as razões desta revolta massiva e súbita, mas a previdência por capitalização deve, certamente, ser colocada numa posição de destaque. Outras deverão ser citadas. Saúde, educação, transporte e energia são campos em que a ação pública desapareceu ou foi muitíssimo reduzida.

A crise chilena envolve uma questão crítica dos nossos tempos para as duas correntes de pensamento.

No caso liberalismo chileno, sustentado pela ampla liberdade econômica, baixos impostos e poucos direitos sociais, como o Estado pode realizar gastos e concessões para manter a paz social, sem destruir seu modelo de crescimento econômico? E na social-democracia, vitoriosa na Europa, Canadá e (em certo sentido nos EUA), como é possível não oprimir a atividade econômica (com tantas leis e regulamentações) mas, ainda assim, conceber os programas possíveis do Estado social?

Aqui fica a questão para o futuro.

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