Chile: mudar ou manter
O colapso chileno chegou como uma turbulência no céu claro. Ninguém via nada de estranho no horizonte e a rota era de completa tranquilidade. Subitamente, porém, apareceu uma tempestade como nunca vista. O país que vivia décadas de progresso e estabilidade agora está no meio de uma onda de contestação que vem demolindo tudo pela frente. Bastou um mês de manifestações para o governo capitular. Primeiro, uma guerra às ruas foi declarada. Logo depois, veio uma onda de concessões que ainda não parecem ter arrefecido a situação. Com as ruas cheias e cada vez mais inquietas, a saída encontrada foi convocar o povo para votar uma nova constituinte que reforme tudo. É aqui onde aparecem as divergências entre os chilenos: alguns querem uma reforma que consiga preservar o modelo de liberalismo econômico. Estes precisam fazer a população acreditar que o colapso atual é passageiro e que pouco precisa ser mudado. O ministro Paulo Guedes, entusiasta da revolução liberal chilena se encontra neste grupo; dos que pensam que os problemas são pontuais e passageiros. Sua fé é de que o modelo, por si, consertará as falhas e que o caminho da estabilidade e progresso seguirá.
A confiança do ministro brasileiro no sistema chileno é total. Tanto que, junto com a primeira reforma para implantar o modelo liberal no Brasil, foi proposto o projeto que implantava a capitalização previdência. A proposta foi derrotada friamente. Os parlamentares brasileiros, mesmo antes da convulsão chilena, mandaram a tal capitalização para o arquivo quase sem discussão. Mesmo dentro do conturbado Chile os defensores deste modelo continuam muito ativos. A economista Bettina Horts, que dirige o Instituto Liberdade e Desevolvimento, proclama que não se deve retroceder no modelo liberal. Ela reconhece que o sistema de capitalização fracassou, mas que a solução possível envolve outras reformas liberais. Novas leis trabalhistas ainda mais flexíveis poderiam corrigir os erros. Diz que uma das razões da crise pode ser encontrada nos muitos direitos dos contratados. Assim repetia, também, o oficial naval japonês Minoru Genda, que planejou os ataques a Pearl Harbour. Ele passou a vida inteira dizendo que o ataque não foi um sucesso absoluto (para os japoneses) devido ao cancelamento de uma segunda onda de ataques aéreos contra as forças americanas. Se ao menos esses ataques adicionais fossem realizados, tudo teria sido resolvido, ali mesmo.
Deixando as opiniões dos economistas de lado, é necessário dizer que quem definirá o futuro chileno serão os eleitores do pleito para a nova constituinte. E é difícil conceber que os mesmo que desejam a queda do modelo atual serão aqueles que o sustentarão.
O colapso súbito do modelo chileno surpreendeu a todos. Direita e esquerda foram pegas no contrapé e passaram a usar argumentos pouco lógicos. A surpresa não pegou só o Chile, ela chegou também por aqui. Muita gente antecipou que o mesmo aconteceria em terras brasileiras e já conclamaram para que o exército se preparasse para uma luta nas ruas, afim de garantir a ordem. Foi apenas barulho de internet. Também o ex-presidente Lula, falando aos seus, disse que “devemos fazer igual ao povo chileno” e promover manifestações. É claro que o que ocorre no Chile não é contra a gestão atual, do presidente Piñera. É um levante que questiona quatro décadas de um modelo de economia liberal. Isso não ocorreu no Brasil, por maiores problemas que tenhamos.
Enquanto o Chile construía o modelo dos Chicago Boys, diferentes governos brasileiros (de direita, centro e esquerda) faziam caminho oposto. Várias foram as medidas de “amortizadores sociais” instituídas ao longo dos últimos trinta anos. São soluções que atenuam a péssima distribuição de renda e socorrem os mais pobres, permitindo maior compactação social. O governo Médici (no decorrer de sua ditadura) criou o Funrural, que hoje atende milhões de pessoas em situação muito vulnerável, em todo país. Já o BPC (Benefício de Prestação Continuada) foi implantado no governo FHC, apoiando atualmente quase cinco milhões de brasileiros, com uma assistência que chega muito perto de um salário mínimo. O Bolsa Família, incorporado no governo Lula, atende perto de quatorze milhões de brasileiros. Há também o auxílio-doença, auxílio-acidente, auxílio-invalidez etc. Programas como o Bom Prato, do estado de São Paulo, e outros de natureza alimentícia também impactam bastante a população mais pobre.
Todas essas políticas atenuam muito a injusta situação social brasileira. É preciso destacar também o SUS, que é um importante mecanismo de saúde pública e que, com seu carater gratuito e universal, socorre as camadas sociais de menor renda e dá a certeza de que serão atendidas, ainda que com algumas falhas, quando estiverem doentes. Muitas são as iniciativas louváveis e incontestáveis do SUS.
Um país que possui um modelo assim é claramente muito diferente do Chile. Mesmo com suas imperfeições, nosso mecanismo socorre os pobres e acaba por inibir revoltas como a que se passou no nosso vizinho.
Apesar de ainda não ser certo o que ocorrerá no Chile depois deste quente processo social, certamente podemos concluir que o que acontecer por lá muito repercutirá no Brasil e em toda a América Latina.
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