RESUMO
Figura de destaque no Rio da primeira metade do século 20, Apparício Torelly, o Barão de Itararé, agitou a vida política brasileira com seu jornal satírico “A Manha”. Preso por Vargas, perdeu a verve a partir dos anos 50, mas deixou marcas nas gerações seguintes de humoristas. Biografia recupera sua trajetória.
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Em 5 de dezembro de 1930, um jornal carioca trouxe uma notícia de grande monta. Em plena República, um decreto presidencial conferia o título de barão a um cidadão, tendo ao lado um estudo genealógico e o brasão da nova casa nobiliárquica, composto por “uma máscara contra gases asfixiantes e mau hálito” e um machado pingando sangue numa tigela com os dizeres “não é sopa”.
Não importa que o jornal fosse um semanário de humor, que o título se destinasse ao dono do periódico e que o decreto fosse criado por ele próprio. Tão logo se autoproclamou Barão de Itararé, Apparício Torelly jamais deixou seu baronato, vindo a conquistar, com esta alcunha, cadeira cativa na Câmara Alta do humor brasileiro.
A coruscante trajetória desse jornalista, político e humorista é o tema da biografia “Entre sem bater: A Vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé” [Casa da Palavra, R$ 55]. O desafio do autor, Cláudio Figueiredo, não foi pequeno. Nas 480 páginas, ele fez caber a vida de um sujeito que jogava sinuca com Villa-Lobos, foi modelo de Portinari, apresentou Jorge Amado a Zélia Gattai, criou jornais, muitas vezes escritos só por ele mesmo, afrontou o presidente Getúlio Vargas, foi sócio e inimigo de Assis Chateaubriand, vereador, pesquisador da febre aftosa e autor de centenas de máximas, muitas delas ainda circulando com frescor pela internet.
“O que se leva da vida… É a vida que se leva”, sentenciava Apporelly, como era chamado. Ele levou uma das mais agitadas, desde o princípio. Filho de brasileiro com uruguaia, neto de americano descendente de russos com índia charrua, com parentes italianos e portugueses, Fernando Apparício de Brinkerhoff Torelly (“Sou uma autêntica Liga das Nações”) nasceu em 29 de janeiro de 1895, em algum lugar entre uma fazenda uruguaia e Rio Grande (RS), onde foi registrado e cresceu.
O livro reúne fartas novidades sobre a infância e a juventude de Apporelly. Uma delas é a trágica morte de sua mãe, aos 18, quando ele tinha 18 meses. Dona Amélia “pôs termo aos seus dias, desfechando um tiro de revólver na cabeça”, descreveu um jornal local. Foi a primeira das cinco tragédias com mulheres que enfrentaria.
O pai, severo e distante, de classe média, enviou-o a um internato jesuíta em São Leopoldo (RS), onde o menino deu mostras de quatro traços marcantes do futuro Barão: 1) o contestador, que enfrentava padres com questões teológicas e com o trombone que tocava na banda escolar; 2) o “grande humorista”, que despontara no papel de Soldado Gamela numa peça de “conclusão solene do ano letivo de 1911”; 3) o criador de jornais: no colégio inventou seu primeiro periódico, “O Capim Seco”. Escrito a mão, teve só um número, de um exemplar; 4) o autor de textos curtos, divertidos e nonsense.
GRAÇA
O Barão foi um autor sem obra -à exceção de um livro de poemas que lançou aos 19-, como vaticinara Graciliano Ramos em 1936, ao conhecê-lo na Casa de Detenção carioca. A recém-reeditada biografia “O Velho Graça” [Dênis Moraes, Boitempo, 360 págs., R$ 52] relembra: “[ Apporelly] tencionava compor a biografia do Barão de Itararé. […] Correram semanas. Não se resolvia, porém, a iniciar a obra, coordenar as ironias abundantes que lhe fervilhavam no interior. Impossível dedicar-se a tarefa longa, julguei.”
Figueiredo não só topou a parada como a encarou duas vezes. Em 1987, publicou “As Duas Vidas de Apparício Torelly” (Record). Passou 20 anos sem voltar ao tema, até que, em 2007, encasquetou de voltar à pesquisa. Ao retornar ao Arquivo Público fluminense e pedir o prontuário de Apporelly, teve uma surpresa. O período de 1934 até 1950 era substancioso, mas, depois disso, os relatórios da polícia política rareavam até a última entrada, de 1961.
Última, não -penúltima. O item mais recente, de 14 de junho de 1985, era sobre o próprio Figueiredo, que naquele dia pedira o prontuário do Barão para o livro anterior -e recebera uma parte ínfima dos papéis. Ao voltar à carga anos depois, localizou documentos pessoais, agora depositados no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. E pôde, enfim, ouvir a voz do Barão, em pedaços de uma gravação feita nos anos 50 pela escritora Antonieta Dias de Moraes. O áudio raro estava com uma parente dela, em São Carlos (SP) -a voz não era cavernosa como a efígie barbuda de seu dono pode sugerir.
“Resolvi escrever o novo livro do zero. Com a vantagem de ter podido usar depoimentos colhidos para o anterior, como o de Luís Carlos Prestes”, relata o biógrafo.
A polícia política, diz ele, fez “um ótimo serviço para mim”: “O investigador ia lá, a cada conferência dele, sentava incógnito na 35ª cadeira e anotava tudo. Foi uma grande contribuição para a preservação da memória dele”, brinca Figueiredo, perfeccionista como seus talentosos irmãos Rubens (escritor premiado e tradutor de “Guerra e Paz”) e Reinaldo (cartunista e membro do “Casseta & Planeta”, ele ilustrou a capa deste ilustríssimo semanário).
A MANHA
O biógrafo ainda mergulhou na leitura da maior criação de Apporelly, o jornal “A Manha”. Com a estreia do projeto Hemeroteca Digital Brasileira (hemero
tecadigital.bn.br), em setembro, uma boa amostra da manhosa publicação está disponível on-line).
Criado em 1926 como suplemento do jornal “A Manhã”, de Mário Rodrigues, pai do dramaturgo Nelson, “A Manha” logo virou independente, sob a batuta onisciente de “Nosso querido diretor”, como Apporelly se referia a si mesmo.
O jornal circulou até fins de 1935, quando o Barão foi preso por ligações com o Partido Comunista Brasileiro, então na clandestinidade. Posto em liberdade em 1936, já ostentando a volumosa barba que cultivaria até o fim da vida, ele retomou o jornal por um curto período, até que viesse nova interrupção, ao longo de todo o Estado Novo (1937-45). Voltaria em edições espasmódicas até 1959.
“Apporelly sempre foi uma pedra no sapato do Getúlio, a quem se referia como ‘G. G. Túlio Vargas'”, diz Lira Neto, biógrafo do presidente. Vargas marcou a trajetória do humorista até onde menos se percebe. Se foi em Itararé (SP) que sediou seu baronato, havia aí uma piscadela para o líder gaúcho. Foi lá que aconteceu -ou deixou de acontecer- um episódio importante na Revolução de 1930, a “batalha que nunca houve”.
Figueiredo avalia a relação dos dois como “tortuosa”. Eles se conheceram nos tempos de colégio, em Porto Alegre, quando Apporelly vivia na mesma pensão que Benjamin, irmão de Getúlio. Opositor fervoroso do ditador, o que lhe custou prisão e silêncio, em 1969, em entrevista ao jornalista e tradutor Remy Gorga, Filho, o Barão disse sobre Getúlio: “Vivo, inteligente, tinha um porte de estadista raro. Ele era povo, não latifundiário. Getúlio sempre foi o pai da pátria”.
Apporelly também teve incursão pela política “stricto sensu”, aventura que durou menos de um ano. Com o fim do Estado Novo, candidatou-se, em 1947, a vereador do Distrito Federal (o Rio), com o lema “Mais leite! Mais água! Mas menos água no leite!”. Com 3.669 votos, foi o oitavo mais votado do PCB, que conquistou 18 das 50 cadeiras. Mas o Partidão logo sofreria sanções: em janeiro de 1948, seus vereadores foram cassados. “Um dia é da caça… os outros da cassação”, anunciou “A Manha”.
Outro caso clássico deu nome à nova biografia do humorista. Em 1934, ele foi sequestrado e espancado por oficiais da Marinha. Ao reassumir seu posto, mandou pregar na porta da redação uma placa com os dizeres “Entre sem bater”.
O filósofo Leandro Konder, 76, conheceu Apporelly e escreveu o breve “Barão de Itararé: O Humorista da Democracia”.”O humor do Barão me possibilitava evitar a chatice frequente da produção cultural do pensamento de esquerda”, disse Konder àFolha.
A historiadora Isabel Lustosa chama a atenção para o novo enfoque ideológico do humorismo de Apporelly: “A tradição humorística anterior a ele era conservadora. O humor dele já nasceu com esse compromisso com a esquerda”. Segundo ela, “A Manha” propôs um tipo de humor mais moderno que o de revistas como “Careta”, “Fon-Fon” e “Malho”, embora tenha bebido nessa fonte.
Figueiredo compara o humor do Barão ao de Agamenon Mendes Pedreira, “homem de imprensa” criado pelos cassetas Hubert e Marcelo Madureira. “O Barão foi estagiário do Agamenon, que é um homem de Neandertal do humor brasileiro”, brinca Madureira, que diz ter lido “Entre sem Bater” “de uma sentada” e “com profundo prazer”. “Nunca falamos: ‘Vamos imitar o Barão’. Mas ‘A Manha’ influenciou muito o ‘Pasquim’, que nos influenciou demais.”
O Barão de que fala Madureira é, sobretudo, o que brilhou até meados dos anos 40. O biógrafo crava uma data precisa: 9 de junho de 1944. Para celebrar os 25 anos de jornalismo de Apporelly, organizou-se um banquete no prédio da Associação Brasileira de Imprensa, no Centro do Rio, que foi um verdadeiro “desembarque na Normandia” de intelectuais: Portinari, Drummond, Niemeyer, Samuel Wainer, Vinicius de Moraes e Oswald de Andrade.
O cardápio, desenhado pelo cartunista paraguaio Guevara, parceiro de Apporelly em “A Manha”, indicava, além dos pratos, a programação da cerimônia, que incluía a execução de “A Marselhesa”. Figueiredo sustenta que a esse apogeu seguiu-se uma linha descendente no humor do Barão.
“As melhores fases do seu trabalho sempre coincidiram com os períodos de maior liberdade e efervescência na vida brasileira, como o fim dos anos 20, a primeira metade da década de 1930 e a redemocratização, em 1945”, disse à Folha. “Seu afastamento da vida pública e o mergulho do país no clima da Guerra Fria podem ter contribuído para o início da decadência, sua e do seu jornal.”
O humorista foi deixando o humor de lado e passou a se interessar por uma velha paixão, a ciência, e pelo esoterismo. No final dos anos 1950, andou às voltas com estudos sobre a filosofia hermética, as pirâmides do Antigo Egito e a astrologia, campo no qual desenvolveu certo “horóscopo biônico”.
Recluso, encastelou-se ao final da vida num apartamento no bairro carioca de Laranjeiras, com livros do chão ao teto, como relembra Remy Gorga, Filho, que lá esteve em 1969. “Parecia que aquelas torres de livros iam nos soterrar a qualquer momento.” Em 1971, em 27 de novembro, aniversário do levante comunista que motivara sua prisão nos anos 30, Apporelly morreu, dormindo em sua cama.
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